Amor: libertar-se dele ou por ele?
Os selvagens corações de Joana e Otávio (ou Clarice e Maury)
Otávio transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os dois eram incapazes de se libertar pelo amor, porque aceitava sucumbida o próprio medo de sofrer. […] E também: como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?
— Clarice Lispector em Perto do coração selvagem
É senso comum que Clarice Lispector foi uma grande escritora, não apenas por sua grandiosidade enquanto artista, mas também pela extensão de sua obra. Contando com mais de trinta anos de produção, escreveu para jornais, crônicas, contos, romances. Hoje, temos acesso até mesmo às suas cartas. Eu mesma tenho, aqui na minha estante, mais da metade de uma prateleira só de Clarice — acho que dá mais de mil e quinhentas páginas, e olha que ainda não tenho nem metade dos seus títulos.
Mas, especialmente para a edição de hoje da news, escolhi falar sobre o seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, publicado em dezembro de 1943, e também sobre dois dos inúmeros temas que essa obra traz à tona: o amor e a liberdade. Na verdade, tudo isso tem o objetivo de contextualizar para vocês a fofoca literária mais interessante que ouvi nos últimos tempos.
Sobre o romance
Na década de 1940, na literatura brasileira, mais especificamente no âmbito do romance, predominavam dois tipos de escritos: por um lado, os modernistas de vanguarda, como Oswald e Mário de Andrade, que ganharam destaque na Semana de Arte Moderna de 1922, e buscavam por inovações formais, críticas à tradição e ao conservadorismo, além do uso de uma linguagem mais próxima da realidade brasileira. Por outro lado, havia o regionalismo, liderado por autores como Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz, que traziam as nuances da “vida no sertão”, descrevendo seus problemas sociais e a luta pela sobrevivência.
Um dos escritores que destoava dessas duas vertentes, nessa mesma época, era Lúcio Cardoso — autor de Crônica da casa assassinada, um romance mais introspectivo, focado nas tensões psicológicas e na angústia existencial. Nesse sentido, sua escrita era a que mais se aproximava da de Clarice Lispector. Além de compartilharem semelhanças estéticas, eram grandes amigos, e foi ele quem sugeriu o título Perto do coração selvagem para a autora.

Assim que foi lançado, o ‘coração selvagem’ não escapou aos olhos dos críticos mais renomados do país. Grandes nomes como Sérgio Milliet, Alvaro Lins e Antonio Candido não demoraram para trazer suas opiniões à público. Uma reação comum entre eles foi a de surpresa, portanto, muitos comentários foram feitos a respeito da riqueza e densidade psicológica do romance, além de muitos elogios ligados ao seu trabalho linguístico cheio de originalidade.
No entanto, a nova romancista também foi alvo de comparações com autores estrangeiros que, há um tempo, já faziam uso da técnica de fluxo de consciência, recurso também usado por Clarice. Aproximaram-na de autores ingleses e franceses, como James Joyce (por conta do prefácio e título, claro), Virginia Woolf e Marcel Proust, mas nunca a colocando no “mesmo patamar” que eles.
Alguns dos críticos ainda consideraram que a autora, apesar de mostrar um grande potencial, não havia atingido o seu objetivo com o romance; ou que o mesmo parecia estar incompleto; ou que a forma utilizada por Clarice não podia nem ao menos ser considerada válida para um romance brasileiro.
Aparentemente, naquele Brasil dos anos quarenta, não se esperava que uma jovem de apenas 23 anos trilhasse um caminho que ia contra aqueles já seguidos na literatura. Que ousadia!
P.S.: na época, um crítico até mesmo chegou a acusar o nome ‘Clarice Lispector’ de ser um pseudônimo, o que é um fato muito engraçado de se pensar hoje.
Sobre o amor e a liberdade
Em Perto do coração selvagem, Clarice Lispector desafiou as convenções tradicionais da literatura brasileira ao explorar a subjetividade de sua protagonista, Joana, em uma estrutura não linear. Dividido em capítulos que alternam entre momentos de sua infância e de sua vida adulta, a narrativa gira, o tempo todo, em torno da consciência de Joana. Com o uso do discurso indireto livre, mesclando a narração em terceira pessoa com a voz interior da personagem, em um fluxo de consciência, a autora constrói um romance lírico, onde a prosa se aproxima da poesia, refletindo a interioridade de Joana — ou a da própria Clarice?
É dessa forma que o livro mergulha nos temas do amor e da liberdade, sempre a partir da perspectiva íntima e fragmentada de Joana. A relação da protagonista com Otávio, seu marido, nos dá um vislumbre da complexidade desses temas: Otávio é um homem multifacetado, de interesses filosóficos e intelectuais que muito agradavam Joana, mas, ao mesmo tempo, representa as limitações da vida matrimonial.
[Joana] Julgava mais ou menos isso: o casamento é o fim, depois de me casar nada mais poderá me acontecer. Imagine: ter sempre uma pessoa ao lado, não conhecer a solidão. — Meu Deus! — não estar consigo mesma nunca, nunca. E ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com o destino traçado. Daí em diante é só esperar pela morte. Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conserva porque se arrasta consigo outra pessoa. (Perto do coração selvagem, p. 136 | Rocco, 2022)
Joana vê o casamento como uma prisão emocional e existencial, onde o desejo de amar entra em conflito com o desejo por liberdade, por uma busca de ser quem se é. Assim, a protagonista se vê perdida, num impasse entre a necessidade de se conectar emocionalmente com o mundo, especialmente Otávio, e a vontade de preservar sua autonomia.
Caminhou de um lado para outro, perplexa com a mudança [o seu casamento com Otávio]. Como? — perguntava-se e sentia que estava sendo ingênua, aquilo tinha dois lados? Sofrer pelo mesmo motivo que a tornara terrivelmente feliz? (Perto do coração selvagem, p. 95 | Rocco, 2022)
Terrivelmente feliz. Era assim que Joana se sentia junto de Otávio. A escolha de palavras é sempre sugestiva na escrita clariceana. Como a felicidade, esse substantivo tão positivo, podia ser, ao mesmo tempo, terrível?
Particularmente, fico encantada com a forma tão simples que Clarice consegue descrever sentimentos tão complexos. De fato, o amor é, mesmo, uma coisa plurilateral, passível de inúmeros sentidos. E a liberdade também.
Tá liberado fazer uma fofoca literária?
Depois de anos da publicação de Perto do coração selvagem, Clarice e Maury se separariam. Por conta do cargo de diplomata do marido, o casal vivia se mudando de país em país, mas Clarice sempre sentiu muita falta de morar no Brasil. Em uma entrevista, ela revela:
“eu vivia mentalmente no Brasil, vivia ‘emprestada’. Simplesmente porque gosto de viver no Brasil, o Brasil é o único lugar do mundo em que não me pergunto, assombrada: afinal de contas o que é que eu estou fazendo aqui, por que estou aqui, meu Deus. Porque é aqui mesmo que tenho que estar, que estou enraizada” (trecho de entrevista concedida a Leo Gilson Ribeiro)
Foi então que a escritora tomou a decisão de voltar para o Brasil, junto de seus filhos, deixando Maury completamente sozinho — numa época em que a comunicação não era tão fácil como estamos acostumados hoje, ainda mais quando pensamos em ligações internacionais.
Com isso, chegamos enfim no foco da nossa esperada fofoca literária: pouco tempo depois da separação, Maury envia uma carta à Clarice pedindo pela reconciliação. Tá, mas e daí? O detalhe é que, em certo momento da carta, o marido passa a se dirigir à Joana — sim, a protagonista de Perto do coração selvagem! Aos curiosos, como eu, seguem alguns trechos da carta:
Vou escrever-lhe pedindo perdão. Perdão com humildade mas sem humilhação. […]
Talvez eu devesse me dirigir a Joana e não a Clarice. Perdão, Joana, de não lhe ter dado o apoio e a compreensão que você tinha direito de esperar de mim. […] intuitivamente jamais deixei de acreditar que coexistissem em você, Clarice, Joana e Lídia [Lídia era, no romance, o par romântico de Otávio antes de que ele a abandonasse para ficar com Joana]. Rejeitei Joana porque o seu mundo me inquietava, ao invés de dar-lhe a mão. Aceitei, demais, o papel de Otávio e acabei me convencendo de que “éramos incapazes de nos libertar pelo amor”. Fui incapaz de desfazer a apreensão de Joana de “se ligar a um homem sem lhe permitir que a aprisione”. Não soube livrá-la da “asfixiante certeza de que se um homem a tomasse nos braços, ela não sentiria através dos noivos nenhuma doçura muito doce; seria ao contrário, como suco ácido de limão” e que “seria madeira seca perto do fogo, torcendo-se prestes a estalar” (estou retraduzindo do francês).
[…] Não estava maduro para entender que, em Joana ou em Clarice, “o ódio pode transformar-se em amor”, não sendo mais do que “uma procura de amor”. Não soube liberá-la do “medo de não amar”. Talvez, como Otávio, eu não tivesse amado “como uma mulher que se abandona” e tivesse necessidade de que ela fosse “fria e segura”.
[…] Poderia continuar citando mas teria que copiar inteiro esse grande livro, profundo documento e depoimento de uma alma de mulher adolescente de uma grande artista. […] Não posso conformar-me, porém […] com o fato de você estar palmilhando, de certa forma, na vida real, o destino de Joana.
[…] Perdoe-me, meu benzinho, de não ter sabido, embora sentisse difusamente a unidade de ambas, de não ter sabido, em dezesseis anos de casamento, realizar a reconciliação de ambas. Não ter sabido convencer Joana de que ela e Lídia eram, e são, a mesma pessoa em Clarice.
(trechos retirados de Clarice,, biografia escrita por Benjamin Moser)
Quando o meu professor da pós contou sobre esse acontecimento em aula, achei interessantíssimo, fiquei extasiada e curiosa para ler mais sobre. E deu no que deu: uma edição da news só para compartilhar isso com vocês.
Imagina só: você escreve um livro que fala principalmente sobre amor, solidão e liberdade. Anos depois, quando você termina com seu marido, ele lê o seu romance — não na língua original, mas sim em francês; talvez porque, não te entendendo na sua própria língua, ele tenta te entender em outra — e, não satisfeito, te escreve uma carta em que compara a relação dos personagens com a de vocês dois. Tudo isso porque ele está desesperado para que vocês não tenham o mesmo destino que o dos personagens (que não, não ficam juntos no final… desculpa pelo spoiler).
Por mais trágico que possa soar, eu achei isso de uma beleza tão grande. Tem prova de amor maior para um escritor do que alguém tentando te entender por meio dos seus escritos, das suas palavras?
Porque, afinal, uma das facetas da literatura que eu mais gosto, especialmente na literatura clariceana, é essa de carregar consigo tanto do mundo psíquico de quem a escreve. Ela é um espelho do nosso interior — ainda que esse espelho esteja quebrado, com os seus fragmentos espalhados. Ela é um mistério a ser desvendado. Para entender, basta querer encarar, tentar juntar todos esses pedaços e se permitir sentir.
Que texto ótimo! Também fiquei curiosa pra ler a carta, mas não fui procurar. Amei que você trouxe alguns trechos! Ele dizendo que Joana e Lídia são a mesma pessoa em Clarice foi tudo... Já mexeu ainda mais com a minha compreensão do livro. Vou sentir falta da aula essa semana!
Eu gosto de "ouvir" essas histórias. Porém, ainda não tomei gosto pelo estilo da escrita (tipo Clarice, Lygia estou tentando no momento). Talvez, seja o tom poético ou o tal do fluxo😅 sigo tentando compreender.