Fóssil de borboleta
por mais estranho que pareça, esse texto é sobre livros
Dividir a existência em duas cidades significa ter uma biblioteca repartida ao meio. Em outras palavras, viajar para a minha cidade natal durante as férias de fim de ano do mestrado significa que ficarei distante de boa parte dos meus livros físicos. Claro, eu fiz uma mala só de livros, tanto para estudos quanto para lazer. No entanto, ainda sinto medo de esquecer de algum que me seja essencial ou de descobrir, nas próximas semanas, que algum livro que não peguei se revele essencial, por acaso.
Se, em algum momento, eu precisar de algum livro que estará em outra cidade, não poderei alcançá-lo. Essa materialidade me assombra, mas também me fascina. Apesar de ser tão fácil acessar e-books e pdfs, não há nada como segurar um livro, folhear e ver as ideias se soltando, fluindo, se desprendendo das páginas e pairando no ar, para que eu as possa capturar como se fossem frágeis borboletas. Rápidas, fugazes.
Esse movimento não acontece no digital. Ele não é dinâmico como o livro. Não pra mim. É como se, nos arquivos de texto, rígidos e planos, eu tenha que escavar as palavras e os espaços em branco. Preciso perfurar a tela e atravessá-la em busca das ideias porque elas são apenas os fósseis das borboletas. Preciso quebrar rochas em busca de algo.
Ironicamente ou não, ando lendo muitos arquivos digitais, pesquisando e escrevendo. Essa des-fossilização está sendo uma presença constante nos meus dias. No entanto, não posso negar que eles permitem aquilo que a geografia me nega: acessar minhas leituras.
Mas, ainda assim, sinto que falta algo em mim quando deixo uma estante para trás. Não é só a biblioteca que fica dividida ao meio, mas eu também. Como se meus livros fossem partes do meu corpo espalhado pelas cidades, meus órgãos distribuídos entre casas diferentes.
Os que viajam comigo são aqueles indispensáveis, sem os quais eu não funciono no momento. Livros vitais. Já os que ficam, aguardando silenciosos na outra estante, são membros que permanecem vivos à distância, sobrevivendo de memória muscular. E eu os sinto. Mesmo aqui, mesmo longe.
Por isso, carregar livros em uma mala sempre me pareceu uma forma de negociar com o futuro: escolho títulos imaginando as paisagens onde eles poderão viver comigo, as horas em que me farão companhia. E sempre me pareceu injusto ter que escolher uns e deixar outros. No fundo, sei que algo sempre fica faltando. A mala nunca dá conta do corpo inteiro.
Enquanto isso, me contento com as borboletas que pude trazer.
E com os meus fósseis de borboleta.




Encantada por essa ideia de "livros vitais" ♡ Que texto mágico!
Leitura é negociar com o futuro mesmo. Tenho a sensação que enquanto tiver um livro me esperando, a morte não pode me alcançar 😅😅😅