visita a um ensaio-museu
uma crônica sobre a dificuldade de se consumir arte em cidades pequenas
no último domingo, visitei um museu. bom, talvez algumas pessoas nem o considerariam um museu de verdade, mas sim um projeto de museu, uma tentativa de ser. um ensaio-museu.
este é o singelo museu da cidade de barra bonita, aqui no interior de são paulo, uma cidade da região onde nasci. ele é, basicamente, uma casa antiga de quatro cômodos, recheada de objetos antigos. e só.
como uma pessoa que nasceu e ainda vive em cidades pequenas, sinto falta de poder ter mais acesso à arte, como poder visitar museus, teatros, bibliotecas etc. com mais frequência. morro de inveja de quem mora na região metropolitana de são paulo, por exemplo, e tem tantas opções culturais para visitar, tão pertinho.
mas, sabe, visitar o pequeno museu de barra bonita me fez sentir grata, apesar de tudo. porque seria pior se ele nem existisse, se fosse só mais um prédio antigo sujeito ao abandono e ao esquecimento.
senti um alívio tremendo quando vi suas portas e janelas abertas, como olhos; quando vi o ar e as poucas pessoas circulando nele e por ele. o museu respirava, vivia. e eu podia entrar, passear sobre seu piso de madeira, observar cada canto. que privilégio!
logo que entrei me aproximei das máquinas de escrever, afinal, é o que me atrai. pensei em como queria uma daquelas para usar como decoração. mas, aí, pensei — caramba! por um período, era isso que as pessoas usavam para fazer o que faço, agora, em um computador, em um teclado que funciona via bluetooth. o que um dia foi um objeto útil, hoje é só mais uma antiguidade.
e o museu, estando cheio dessas velharias, coisas que hoje não se vê mais ou que evoluíram para outras — mais simples, mais bem estruturadas, mais compactas — me arrebatou. mais uma vez, pensei — caramba! se não fossem por todos esses cacarecos, não teríamos o que temos hoje. e o mais doido de tudo é pensar que, um dia, no futuro, tudo que nos é útil será apenas cacareco.
com meu olhar e pensamento inquietos, andei, observei e refleti — por mais óbvio e egoísta que seja, às vezes acho tão estranho pensar que há tantos anos, séculos, já existia gente vivendo nesse mundo. um mundo tão diferente, mais difícil, mais limitado. um mundo repleto de dificuldades, mas também cheio de vontade de fazer as coisas acontecerem. um mundo sem telas, sem inteligência artificial, um mundo nu e cru. um mundo de guerra, e também um mundo de paz.
mas essa estranheza é paradoxal, daquelas que vêm junto com uma sensação de familiaridade. ali, rodeada dos objetos passados, eu senti uma intimidade absurda. de repente, a distância entre eu e as pessoas que usavam todas aquelas coisas não parecia tão grande assim. inexplicavelmente, elas estavam logo ali, bem debaixo do meu nariz.
e eu vi aquelas pessoas, todas elas. nas pinceladas de suas pinturas, eu as vi. nas canetas-tinteiro, eu as vi. nas teclas das máquinas de escrever, eu as vi. nas cadeiras estofadas, eu as vi. nas panelas, chaleiras e xícaras, eu as vi. na vista da janela, eu as vi. e as vendo, assim, em tudo, eu me vi.
me imaginei ali, sendo uma mulher cem anos atrás, olhando pela janela e tentando registrar essa vista em uma tela. cheia de ferramentas, pincéis, tintas, godês e, sobretudo, paciência. para a eu do agora foi mais fácil, bastou pressionar um botão e tirar uma foto, que ficou guardada no celular, dentro do meu bolso. tão simples, uma questão de segundos.
ainda assim, me reconheci em resquícios de cotidiano. ainda somos os mesmos seres humanos, essencialmente. ainda temos objetos dos quais nos apoiamos para tentar facilitar nossas vidas e fazer o que precisa ser feito. ainda somos seres perdidos, sozinhos. ainda tentamos, de toda e qualquer forma, nos agarrar a um lampejo qualquer de vida.
naquele momento, eu percebi quanta falta me faz não ter acesso tão fácil a museus. e desejei poder visitar outros, conhecer mais histórias e objetos antigos. ainda precisamos — talvez mais do que nunca — da arte pra nos lembrar de que, sim, somos apenas isso: humanos.
na saída, escrevi meu nome num caderno que tinha lá. imagino que ele provavelmente será usado para fazer um relatório, afinal alguém precisa comprovar que houve, ali, alguma presença. para constar que ainda vale a pena manter um museu em pé em uma cidade pequena do interior.
além do nome, em uma parte da tabela — desenhada à mão, em caneta azul — era pedido para registrar qual sua profissão. coloquei “escritora” e fui embora, carregando um mundo de gente dentro de mim.
Seu texto transmite uma sensação bonita de conexão com o passado e de como os museus nos lembram que, no fundo, continuamos sendo os mesmos seres humanos, tentando encontrar sentido na vida. A forma como você descreve o pequeno museu e a relação com os objetos antigos dá um toque nostálgico e poético à experiência.
O trecho em que você diz "e as vendo, assim, em tudo, eu me vi." sintetiza perfeitamente essa ideia de que, apesar do tempo, as histórias das pessoas que vieram antes ainda ecoam na nossa própria existência
eu senti cada palavra! que texto maravilhoso! grata por trazê-lo ao mundo!