O fim do último semestre do ano carrega um cansaço típico. É o momento em que ficamos de saco cheio de tudo: do trabalho, das responsabilidades, da vida adulta, e até mesmo dos livros, dos hobbies, das coisas que fazemos por amor e por ser quem somos.
É só chegar no final de novembro que o corpo pede por descanso, mas aquele descanso que se resume puramente ao ócio. O descanso de querer dormir por mais de doze horas seguidas, de olhar pra parede em branco, de isolamento, de mergulhar em um silêncio profundo.
Mas eu sinto que há um cansaço específico que vem de ser brasileiro, e ele também pesa mais nesses dias do ano. É cansativo viver em um país onde precisamos lutar por direitos mínimos, onde a política é uma bagunça, onde o salário mínimo é uma piada, onde há tanta violência e desigualdade, onde não há perspectiva de um bom futuro, onde a arte, especialmente a literatura, entre tantas outras coisas, é extremamente desvalorizada.
E é nesse Brasil que eu escolhi ser quem sou: uma leitora, estudante de Letras, pesquisadora em literatura, escritora de newsletter, professora de inglês, revisora e tradutora de textos, mediadora de um clube de leitura. Parecem todas escolhas tão idiotas, tão mal pensadas, nesse lugar hostil em que vivemos.
Nessas horas, me lembro do seguinte trecho de um dos meus livros favoritos:
“O que pode a literatura? Que horizontes ela alcança? Ou, mais especificamente ainda: o que pode a literatura em um mundo em colapso, assombrado pelo aquecimento global, por pandemias, ascensão da extrema-direita, aumento da miséria, entre outras tragédias? Em suma, em uma realidade na qual tudo parece mais urgente que a literatura?”
— Carola Saavedra, O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim
E me questiono: qual o papel da literatura em uma sociedade que a menospreza totalmente?
É o de sobreviver.
Diante de tantos desafios, vivo pelos pequenos momentos que me fazem ter forças pra seguir: os encontros do the sad girls book club, onde conversamos sobre como os livros nos tocam, nos fazem compreender algo; a mensagem inesperada de um desconhecido dizendo que se identificou com um texto meu; a certeza de que, ao trabalhar com a linguagem, seja ensinando, revisando ou traduzindo, estou ampliando horizontes — os meus e os dos que vêm comigo.
Ah, e quanta resistência é necessária para ser brasileiro e viver pela arte, especialmente a literatura! Ainda assim, não nos vemos seguindo outro caminho, fazendo outra coisa. Os anos se encerram, começam de novo, e nós continuamos a seguir esse caminho.
Mas eu acho que é por esse mesmo motivo que precisamos ouvir a esse chamado. Porque se todo esse universo nos toca, de alguma forma; se sentimos a febre por escrever uns versos; se a leitura é aquilo que nos tira da realidade e também nos devolve a ela com mais força; se a nossa vida parece não ter sentido ou parecer faltar um pedaço sem a literatura, então devemos seguir. Seguimos por ela e com ela.
Castigo ou bênção, tanto faz. Não dá pra fugir de ser amaldiçoado ou abençoado pelas palavras. Por isso, estamos aqui. E seguimos, com todo o cansaço do mundo, mas seguimos.
Um dia você finalmente soube
o que deveria fazer, e começou,
embora as vozes ao seu redor
seguissem gritando
seus maus conselhos —
embora a casa inteira
começasse a tremer
e você sentisse o velho puxão
nos seus tornozelos.
“Conserte a minha vida!”
cada voz suplicou.
Mas você não parou.
Você sabia o que deveria fazer,
embora o vento insidioso
com seus dedos firmes
atingisse suas fundações
embora aquela melancolia
fosse terrível.
Já era tarde
demais, e a noite selvagem,
e a estrada cheia de galhos
caídos e pedras esparramadas.
Mas, pouco a pouco,
enquanto você deixava as vozes para trás
as estrelas tornavam a queimar
por entre véus de nuvens,
e surgiu uma nova voz
que você lentamente
reconheceu ser sua própria,
e que te fez companhia
enquanto você mergulhava mais
e mais longe, imersa no mundo,
determinada a fazer
a única coisa que você poderia fazer —
determinada a salvar
a única vida que você poderia salvar.— Mary Oliver, A Jornada (Tradução por Yasmin Nigri e Roy David Frankel)
amo ser rodeada por arte, eu me sinto completamente acolhida e um pouco mais livre para ser quem eu sou, mas é muito triste que esse conforto que eu sinto não seja universal na realidade brasileira de hoje e que tanta gente não tenha a oportunidade de descanso por simplesmente não ter tempo 😭
A literatura é sobrevivência e nos salva todos os dias. E quero agradecer os seus textos que me lembram o quanto gosto dela e de ler. Fim de ano é puxado, ainda mais com a política orquestrada mais do que nunca, com nuvens de fumaça uma atrás da outra, fazendo com que a gente tenha que se desdobrar em 20 pra proteger um mínimo de direitos, é desesperador. A literatura é resistência e sobrevivência 🧡