"O que você não tem mais que te entristece tanto?"
Como "A natureza da mordida" me despertou uma urgência por viver
Olívia, o que você não tem mais que te entristece tanto? (p. 11)
— Carla Madeira, A natureza da mordida
Essa foi a frase que me fisgou quando comecei a ler A natureza da mordida, romance da autora contemporânea Carla Madeira. Ela aparece logo nas primeiras páginas e já nos revela a intensidade que as próximas carregarão.
Há livros que nos pegam pela mão e nos guiam suave e calmamente até sua história. E há aqueles que, logo nas primeiras páginas, nos confrontam, nos fazem parar e nos obrigam a sentir. A natureza da mordida é, definitivamente, do segundo tipo. A autora é conhecida por abordar temas polêmicos, mas prefiro definir como “temas dos quais queremos fugir”. Para resumir, ela toca na ferida.
No início do livro, nos deparamos com duas personagens: Olívia, descrita como uma mulher de cabelos ruivos, olhos verdes e dona de uma tristeza borbulhante; e Biá, uma senhora de cabelo chanel, olhos grandes e levemente puxados, e uma ousadia poética.
Nesse primeiro momento, temos a imagem de Olívia escrevendo, acomodada em uma mesa da banca do Rodolfo. Escreve concentradíssima e sem pausas, e lágrimas rolam pelo seu rosto. Enquanto isso, Biá só sabe olhar para a moça e pensar, preocupada, em como abordá-la e explicar que está sentada no seu lugar.
É assim que, do nada, uma idosa começa a fazer um interrogatório íntimo para uma mulher aleatória que encontrou chorando e, diga-se de passagem, nem conhece. Bem intrometido da parte dela. Mas aí, assim como Biá, vamos ficando curiosos pra entender o que é essa tal coisa que a Olívia tem que a entristece tanto.
E o mais inesperado é que Olivia, naquela situação, ao invés de simplesmente ceder o lugar e ir embora, decide responder a senhorinha. Dessa forma, nasce uma amizade sustentada por desgraças.
Nossa amizade começou assim, enquanto nos afogávamos. (p. 20)
Nós duas, Olívia, eu e você, estamos igualmente fo-di-das. (p. 67)
No começo da leitura, não sabemos dos detalhes que aparecem e nem quem são os demais personagens citados, o que torna a narrativa nebulosa. Descobrimos que a razão da tristeza de Olívia tem nome: Rita. Mas o que essa Rita significa pra ela, não sabemos. Assim, a própria motivação para continuar a ler acaba sendo a busca por entender o que está acontecendo.
Biá, por sua vez, com todas as suas perguntas indelicadas, instiga Olívia a encarar suas faltas, enquanto traz à tona as faltas que permeiam sua própria vida. Dessa maneira, ela revela ser alguém que está afastada de quem mais deveria estar perto — sua própria filha. Esse distanciamento surge em suas falas, quando menciona as barreiras que se formaram com o tempo e as palavras que nunca foram ditas.
É como se Biá, de alguma forma, enxergasse em Olívia uma oportunidade de se reconectar com aquilo que perdeu em sua própria vida: uma chance de cuidar e de criar uma relação, mesmo que seja com alguém que, até então, era uma completa estranha. Afinal, essa estranha foi a única que parou para a ouvir.
Assim, a narrativa espelha o caos interno, nos transmitindo uma experiência parecida com aquela pela qual as personagens estão passando — de não saber exatamente o que pensar ou como lidar com suas emoções. Sentimos na pele a dor de Olívia e de Biá. E esse caminho que vai tomando forma para o entendimento está tanto no nível da história quanto no da linguagem.
Porque se tem uma coisa que a Carla Madeira sabe fazer é contar uma história. Sua escrita fluida faz ser impossível não ficar curioso com a trama. Além do mais, a autora tem uma prosa poética que agrada alguns, porém muito desagrada outros. Há quem leia as frases de efeito de Biá e pense: “caramba, parece que isso foi tirado do Tumblr de 2012”. E eu — apesar de me custar admitir isso — fiquei encantada justamente por esses trechinhos.
O que realmente nos fere, Olívia, sempre envolve o que amamos. (p. 20)
Dos temas que envolvem esse romance, os que mais me chamam a atenção são as amizades femininas (e o fim delas), as relações familiares e suas complexidades e as perdas. Toda essa combinação, por mais triste que possa soar, — e, no livro, os temas são apresentados de uma forma bem triste, mesmo — me despertou uma urgência por viver.
Demorei a entender que não temos que nos desculpar por nosso sofrimento, Biá. Um amor interrompido não é uma dor qualquer. Não é uma dor qualquer ser interditada, impedida de estar com quem amamos justamente por quem amamos. É uma dor cheia de direito. (p. 148-149)
Após minha leitura (que, na verdade, foi uma releitura), percebo que esse livro diz muito sobre a dor que as faltas — principalmente as das pessoas que amamos — nos causam. No entanto, é por esse mesmo motivo que a obra reafirma a necessidade de alimentarmos boas relações, mantermos vivas as conexões e termos com quem contar; e que isso é urgente, mais urgente do que nunca, porque toda a beleza e a vida podem acabar em um piscar de olhos. Em uma abocanhada, em uma só mordida. A vida ri de nós com a sua grande boca banguela, como diz Biá.
A vida não é de confiança, Olívia, nos apunhala com a mesma faca que passa a manteiga. A vida, essa senhora banguela, não teme a feiura e faz coisas medonhas com sua boca murcha que não lhe inibe as gargalhadas. Ao contrário, gosta de nos exibir a extensão da mordida que nos dará com deboches e ironias ao invés de dentes, para nos fazer pagar a língua enquanto giramos estonteados, pra lá e pra cá, entre suas gengivas. (p. 19)
Depois que conheci esse livro, vivo me perguntando: o que eu ainda tenho mas que, se não tivesse mais, me entristeceria tanto?
E isso me faz querer ser alguém melhor. Me faz querer passar mais tempo com a minha família, dizer mais vezes a eles quanto os amo. Me faz querer chamar aquela amiga com quem já não converso tanto. Me faz querer pedir desculpas por todas as vezes em que não pude ser e estar presente.
Eu não quero levar essa mordida.
Mas o livro, ah, ele eu devorei com uma abocanhada só!
No nosso último encontro do the sad girls book club,
conversamos sobre esse livro e foi incrível!

Cada uma trouxe suas próprias percepções, e o resultado foi uma conversa cheia de trocas sinceras. Foi muito engraçado como cada uma se conectou de maneira diferente com a história da Olívia e da Biá: algumas foram fisgadas desde o começo, como eu, e outras começaram se irritando com as frases de efeito da Biá, mas foram cedendo à curiosidade e, no fim, aproveitaram bastante a leitura.
Obs: amei as fotos🧡
Eu adorei o seu texto! Confesso que o livro não me fisgou, estava achando simples e concluindo que não curto prosa poética 😅 (tá, eu dei umas reviradas de olhos). Seu texto me fez ver as coisas de uma forma um pouco diferente e mais pra frente tentarei ler outra vez.